Tangenciando a dignidade da pessoa
humana nas questões da Seguridade Social
Não se tem a pretensão neste trabalho de esgotar o conceito de dignidade da pessoa humana, mas apenas tergiversar acerca da influência deste princípio nas demandas que envolvem os direitos da seguridade social (saúde/previdência/assistência), além disso: tentar-se-á estabelecer tecnicamente e sob o jugo do postulado constitucional da unidade de forma prática em quais aspectos a dignidade da pessoa humana é atacada nestas espécies de demanda.
O tema dignidade da pessoa humana é extremamente amplo e necessita sempre de algumas delimitações para que este direito tenha chances de ser efetivamente tutelado e não se transforme somente em mera utopia do constituinte.
A princípio importante observar qual a ótica da Constituição da República do que seja “dignidade da pessoa humana” e, de chofre, afirma-se que se trata de um fundamento.
O
que é um fundamento?
Diversos
conceitos podem ser atribuídos, o mais corriqueiro é equiparar fundamento a
princípio.
Todavia
no presente contexto adota-se o conceito retirado da filosofia, dentro da
classificação “fundamento ideal”, ou seja: esse fundamento é a razão de ser de
todo o enunciado (Constituição da República).
Art. 1° A República
Federativa do Brasil, formada pela união indissolúvel dos Estados e do Distrito
Federal, constitui-se em
Estado Democrático de Direito e tem como fundamentos:
III – a dignidade da pessoa humana;
IV – os valores sociais do trabalho e da livre
iniciativa;
Portanto
todas as emendas, leis, decretos e atos normativos de qualquer ordem devem
observar inexoravelmente estes fundamentos, uma vez que a sua razão de ser e
existir é contribuir para a concretização destes fundamentos.
Logo,
o trabalho dentro da sociedade brasileira é reconhecido juridicamente como um
dos pilares em que se funda a nossa República; o trabalho é considerado um valor
social em si mesmo, e nas demandas envolvendo direitos da seguridade social, o Autor
muitas vezes não pode justamente exercer trabalho ficando impedido de cumprir este
fundamento e contribuir com este valor para com a nação.
Trata-se de situação digna? Entende-se que não.
Em
sendo a dignidade da pessoa humana fundamento e ao seu lado figurar o valor
social do trabalho, e em estando o indivíduo inapto ao trabalho, deve o Estado
garantir meios para que o individuo retorne a exercer este valor e se não
possível deve oferecer substitutivos, para
que se não possível garantir a dignidade da pessoa humana aplicando o
fundamento do valor social do trabalho, que se garanta a mesma dignidade
aplicando proteção social.
O
referido valor social vem exposto no artigo 6° da Constituição Federal em que
constam os Direitos Sociais do Homem, o caput
explicita:
Art. 6° São direitos
sociais a educação, a saúde, o trabalho, a moradia, o lazer,
a segurança, a previdência social,
a proteção à maternidade e à infância, a assistência aos desamparados na forma desta
Constituição.
Ressalte-se
que tais Direitos são fundamentalmente inerentes ao Homem e, segundo Alexandre
de Moraes, são “de observância
obrigatória em um Estado Social
de Direito, tendo por finalidade a melhoria de condições de vida aos
hipossuficientes, visando à concretização da igualdade social.” (MORAES,
Alexandre. Direito Constitucional. 23ª ed. Atlas, p. 193.)
Ainda
nesta esteira, o Constituinte Originário consagrou no Título sobre a Ordem
Econômica e Financeira os Princípios Gerais da Atividade Econômica.
Art. 170 A ordem econômica,
fundada na valorização do trabalho
humano e na livre iniciativa,
tem por fim assegurar a todos a
existência digna, conforme os ditames
da justiça social, observados os seguintes princípios:
(...)
VII – redução das desigualdades regionais e sociais
VIII – busca do pleno
emprego.
Além
do reconhecimento (já mencionado) em sede dos princípios fundamentais da
República, dos Direitos Humanos em plano Internacional
e dos Direitos Fundamentais do Homem (no plano interno), a Constituição
Nacional também o fez quando reconheceu a importância da Atividade Econômica.
Quando
o Estado destaca o Trabalho como um valor, deve garantir que este seja
protegido, assim, o “atendimento aos
direitos sociais exige prestações positivas dos poderes públicos, razão pelo
qual são denominados direitos de promoção ou direitos prestacionais.”
(NOVELINO, Marcelo. Direito Constitucional, 2ª ed., Editora Método, p. 371).
Aliás,
o artigo 3º da Constituição Federal estabelece objetivos da República
Federativa do Brasil, sendo que em seu inciso III dispõe sobre a erradicação da
pobreza e da marginalidade e objetiva ainda a redução das desigualdades sociais e regionais.
No
Título VIII da Constituição vislumbra-se a Ordem Social, e no artigo 193 há a
seguinte disposição:
Art. 193 A ordem social tem como base o primado do trabalho, e como objetivo o bem–estar e a justiça sociais.
Conforme
já mencionado o valor do trabalho é expressamente reconhecido como a base da
ordem social e seu objetivo é o bem-estar e a justiça social.
O conjunto de
princípios, de regra e de instituições destinado a estabelecer um sistema de proteção social aos indivíduos
contra contingências que os impeçam de prover as suas necessidades pessoais
básicas e de suas famílias, integrado por ações de iniciativa dos
Poderes Públicos e da sociedade, visando assegurar os direitos relativos à
saúde, à previdência e à assistência social. (grifado)
Em suma, a
aplicabilidade dos direitos humanos fundamentais sociais depende, em elevado
grau, do enunciado das normas que os consubstanciam, sendo que, enquanto alguns
poderão ser concretizados judicialmente pela via interpretativa, outros
dependerão de intermediação legislativa e/ou administrativa. Não obstante, o princípio da máxima efetividade (art. 5º,
§1º) impõe seja feita uma interpretação que confira a maior efetividade
possível a esses direitos, para o cumprimento da função social para a qual
foram criados.
Posto isto, tem-se nos casos
em que o indivíduo não pode trabalhar por motivo de doença, invalidez, idade
avançada, deficiência, desamparo, que a dignidade da pessoa humana é afrontada
no aspecto do valor do trabalho positivado na Carta Política Nacional.
O
exigível é que o Estado faça esforços no sentido de entregar condições ao
indivíduo de retorno ao trabalho. Instrumentos para tanto: saúde pública e
processo de reabilitação previsto na Lei 8.213/91. Em não havendo possibilidades
de retorno, concede-se substitutivo do trabalho que é o benefício
previdenciário ou assistencial (prestações positivas).
O
Estado se obrigou a promover a saúde a reabilitação e a proteção social no caso
de impossibilidade do exercício do trabalho, não se tratam de favores estatais,
logo uma vez indevidamente negados ferem automaticamente a dignidade da pessoa
humana no aspecto valor do trabalho.
Necessário
que a negativa de acesso à Seguridade Social seja injustificada ou extremamente
equivocada nos seus fundamentos uma vez que por óbvio que a Administração
Pública tem o poder de gerir e rever seus atos. Lembrando também que milita em
favor da Administração Pública a presunção de legitimidade, ou seja, o ônus da
prova é invertido e compete ao segurado comprovar a discrepância.
Assim,
em virtude do papel que deve desempenhar o juiz na efetivação dos direitos
subjetivos individuais, especialmente aqueles que direta ou indiretamente se
correlacionam com os direitos inerentes à dignidade da pessoa humana e aos
direitos sociais, curvo-me ao v. aresto de fls. 156/157, para exercer a função
que me foi atribuída e atender à finalidade última do ato de julgar que,
segundo meu sentir, consiste em fazer justiça e não simplesmente aplicar
cegamente as normas de direito positivo.
Não
atende ao princípio supremo e valor ético referente à dignidade da pessoa
humana, decisões que sem atribuir uma solução efetiva à demanda, prendem-se a
tecnicismos com objetivos nitidamente políticos, referentes à competência
material de órgão do Poder Judiciário que, de fato é uno, pois divisível é
apenas a função ou o trabalho, para desprezar a Constituição Federal e as
normas infraconstitucionais como um sistema integrado e incindível,
esquecendo-se que embora as regras de atribuição de funções e divisão de poder
devam ser respeitadas para que se garanta o Estado Democrático de Direito
Social, a razão de existir do próprio Estado tem como pressuposto lógico
antecedente o próprio ser humano (...). Apelação Cível Com Revisão n,J.
843.803-00/9 Voto n-. 8.969
O
Estado é para o homem e não o homem para o Estado, no mesmo sentido o eminente
Ministro do Supremo Tribunal Federal, Gilmar
Mendes:
Em um dos seus mais
refinados escritos – Pessoa, Sociedade e História – Miguel Reale afirmou que
toda pessoa é única e que nela já habita o todo universal, o que faz dela um
todo inserido no todo da existência humana; que, por isso, ela deve ser vista
antes como centelha que condiciona a chama e a mantém viva, e na chama a todo
instante crepita, renovando-se criadoramente, sem reduzir uma à outra; e que,
afinal, embora precária a imagem, o que importa é tornar claro que dizer pessoa
é dizer singularidade, intencionalidade,
liberdade, inovação e transcendência, o que é impossível em qualquer
concepção transpersonalista, a cuja luz a pessoa perde os seus atributos como
valor fonte da experiência ética para ser vista como simples “momento de um ser
transpessoal” ou peça de um gigantesco mecanismo, que, sob várias denominações,
pode ocultar sempre o mesmo “monstro frio: coletividade; espécie; nação; classe;
raça; idéia; espírito universal; ou consciência coletiva”.
Pois bem, é sob essa concepção metafísica do
ser humano que reputamos adequado analisar a dignidade da pessoa humana, como
um dos princípios – desde logo considerado de valor pré-constituinte e de
hierarquia supraconstitucional – em que se fundamenta a República Federativa do
Brasil, nos termos do artigo 1 da Carta Política de 1988. (MENDES, Gilmar
Ferreira et al. Curso de Direito Constitucional. 2 ed; Ed. Saraiva;2008; pág.
150)
Trata-se
de valor supraconstitucional a dignidade da pessoa humana, é fundamento da
República, e, como bem explicitou professor Miguel Reale, na medida em que se furta do segurado seu último
recurso, no caso a Previdência Social ou assistência social, flagrantemente se
afronta o ser humano e por conseqüência sua dignidade, tendo em vista que o ser
humano, que é individual por essência, foi transformado em “parte do coletivo”,
lançado em um caldeirão comum, ou em uma vala comum.
O
fundamento da dignidade da pessoa humana mantém íntimo liame jurídico com o valor
social do trabalho, do qual diversos indivíduos já não desfrutam, restando-lhe
apenas o substitutivo representado na figura da Previdência ou Assistência Social,
a qual por sua vez possui ligação com o princípio constitucional da justiça
social.
Finalizando,
pede-se licença para citar outro Autor, o qual também discorre acerca da
dignidade da pessoa humana, o ilustre Procurador Federal, Marcelo Novelino:
O fato de ser cada
vez maior o número de declarações universais de direitos e de Constituições que
a consagram expressamente é relevante na medida em que esta noção assume um
inquestionável caráter jurídico. Por certo, não é indiferente que a dignidade
da pessoa humana esteja explicitada na Constituição. Esta positivação faz com que ela deixe de ser apenas um valor moral
para se converter em um valor tipicamente jurídico, passando a se revestir de
normatividade.
Uma das conseqüências
da consagração da dignidade humana no texto constitucional é o reconhecimento
de que a pessoa não é simplesmente um reflexo da ordem jurídica, mas, ao
contrário, deve constituir o seu objetivo supremo, sendo que na relação entre o indivíduo e o Estado deve haver sempre
uma presunção em favor do ser humano e de sua personalidade, vez que o Estado
existe para o homem e não o homem para o Estado. (NOVELINO, Marcelo.
Direito Constitucional. 2 ed. Ed. Método; 2008; p. 206.)
A previdência social será organizada sob a forma de regime
geral, de caráter contributivo e de filiação obrigatória, observados critérios
que preservem o equilíbrio financeiro e atuarial, e atenderá, nos termos da
lei, a:
Todos estes eventos previstos
especificamente protegem o trabalhador de riscos sociais inevitáveis que o
impedem de retornar ao trabalho.
Em conclusão: entende-se que nas
situações em que indevidamente é negado ao segurado acesso a seguridade social
o trajeto que se percorre para que a dignidade da pessoa humana seja ferida
passa inevitavelmente pelo fundamento do valor social do trabalho, uma vez que
o indivíduo por incidência de algum risco social se encontra inapto ao
trabalho, situação que ganha foros de indignidade quando se nega a
correspondente proteção social para o respectivo infortúnio.
Murilo
Nogueira
Advogado